Fomos ao encontro dos últimos diretores do Correio da Feira. Todos, à exceção de Salomão Rodrigues, que desempenhou funções na direção entre 2004 e 2006, e que justificou devidamente a ausência do seu testemunho, abordaram as suas passagens por este jornal centenário, que celebrou, nada mais nada menos do que 125 anos em prol do jornalismo
Serafim Lopes, diretor-adjunto de Manuel Tavares, já falecido (de 1998 a 2003)
“O convite surgiu de uma forma natural. O Manuel Tavares e eu, além de bons amigos, éramos colaboradores assíduos do jornal e tínhamos um relacionamento muito estreito com as senhoras Brízida (diretora) e Maria Luísa (administradora). A motivação foi a de continuar a contribuir para o engrandecimento do jornal, do qual já era colaborador desde 13 de maio de 1963, ou seja, desde os 18 anos, conforme o cartão emitido e assinado pela Maria Luísa, que guardo no meu arquivo.
Nos poucos anos de direção, o Manuel Tavares, que era um talento na arte de escrever, prematuramente desaparecido do nosso convívio, e eu, demos início a um processo de modernização do jornal, sempre no respeito pelos seus princípios fundacionais. Rosto e conteúdo mais ‘arejados’, incansável porta-voz dos anseios e carências do território feirense.
A redação voltada para o belo alto da Piedade era um local inspirador de trabalho (noticiário e revisão de provas e impressas na tipografia, no piso inferior), mas, também, de saborosos momentos de convívio. Quantas histórias e conversas agradabilíssimas apreciei, dos saudosos feirenses Francisco Neves e António Lamoso. Ou de Celestino Portela, um exemplo de dinamismo nas suas iniciativas de índole social e cultural. E de tantos outros. De todos estes momentos inspiradores, guardo um sentimento de gratidão.
Correio da Feira continua a ser o ‘meu’ jornal. E quando administrado por um ilustre feirense e realizado por profissionais competentes e dedicados, o caminho é para a frente. Parabéns!”
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Albino Santos, diretor interino (de 2 de janeiro de 2003 a 19 de dezembro de 2004)
“O convite veio na sequência da demissão do anterior diretor Manuel Tavares, que desempenhou funções de 11 de abril de 1997 a 27 de dezembro de 2002, sendo Serafim Aires Lopes o diretor-adjunto, e eu o administrador. Esta cisão, e para que fique registado, deveu-se ao facto de a administração não aceitar vender o Correio da Feira, como era pretensão da então direção do jornal.
Seguidamente, formulámos o convite a Roberto Carlos Reis, que para além de amigo, era desde os 12 anos de idade colaborador do jornal e com umas competências extraordinárias na área do jornalismo em diversos órgãos de comunicação social regional e nacional, mas devido às incompatibilidades (profissionais e desempenho de cargos políticos) impostas pela lei de então, não poderia assumir o cargo de diretor. Durante este período, Roberto Carlos Reis foi o meu braço direito e esquerdo, para ‘levar o barco a bom porto’, tendo apresentado Salomão Rodrigues, jornalista experimentado e credenciado, que aceitou assumir a direção do jornal em 2 de janeiro de 2004.
[Os principais desafios foram] manter o jornal nas bancas, continuando o legado deixado pelas minhas madrinhas [Brízida e Maria Luísa] e não deixar cair em mãos de alguns partidos políticos. Sou do tempo da tipografia à moda antiga, da impressão a chumbo, mais tarde a offset e posteriormente o digital. Claro que houve uma evolução extraordinária, sendo possível ler o jornal just in time, em qualquer parte do mundo e a qualquer hora.
Guardo memórias extraordinárias: ajudar o meu pai a imprimir as provas no prelo que tínhamos manual, estar com os meus amigos a intercalar e colar as etiquetas no jornal, levá-los em tabuleiros aos CTT, ajudar a desfazer as páginas, levar para derreter e depois voltar a fazer as barras de chumbo, lancharmos e brincadeira pegada, após cumprimento destas tarefas. Nunca irei esquecer também a minha primeira explosão de chumbo, quando comecei a trabalhar com a máquina intertype ao fazer as linhas em chumbo. Só havia tempo para me atirar ao chão! Outra memória foi a passagem da impressão de chumbo para a impressão em offset e a minha madrinha, antiga diretora e administradora, conseguiu sair da cama e descer à tipografia dias antes do seu falecimento, e ver a primeira quadricromia do Correio da Feira. O Correio da Feira faz parte da minha memória e da minha identidade. Deu-me experiência para a vida, uma vez que fiz de tudo no jornal: revisor, administrador, diretor, tipógrafo, impressor, distribuidor e comercial".
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Paulo Noguês (de 2006 a 2011)
“O convite foi-me feito pelo proprietário do jornal e aceitei-o pela relação de amizade que tinha e tenho por Alcides Branco. Os desafios tiveram, sobretudo, a ver com a escassez de meios para dar ao jornal um cunho ‘nacional’ mais acentuado.
Não houve uma alteração qualitativa. O jornal continuou a ser uma publicação séria, bem feita e retratando as comunidades em que se insere. Guardo boas memórias, de excelentes colaboradores carregados de paixão e vontade. Foi uma experiência diferente, mas enriquecedora. A imprensa regional é um complemento essencial para estimular o debate de ideias em torno de questões que tocam as pessoas no seu quotidiano.
Confesso que não continuo atento ao trabalho do jornal. A minha vida profissional afastou-me para Lisboa e provocou um corte na atenção dada à imprensa regional”.
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Orlando Macedo (de 2011 a 2012 e de 2015 a 2018)
“O convite, da primeira vez, surgiu por ‘imposição’ dos (então) promitentes novos proprietários, um dos quais (Jorge de Andrade) só admitia adquirir o título na condição de eu aceitar dirigi-lo. Após algum tempo de reflexão assumi tal compromisso, definindo-se logo à partida a tarefa de requalificação da publicação, no que tocava exclusivamente a formato(s), dinâmica(s) e conteúdo(s) editoriais. Um desafio aliciante, portanto. Na segunda oportunidade, a administração convidou-me a regressar para reposicionar o jornal no rumo anteriormente traçado.
Desafios: libertar o título das amarras de alinhamento político-partidário, instituindo a independência editorial como premissa; modernizar os conteúdos e imagem e lançar bases para a via da profissionalização, que urgia, passando a acatar-se, também, as mais estritas regras deontológicas fixadas para o setor; e fazer do Correio da Feira o grande areópago institucional dos feirenses, quer individual quer coletivamente, disponibilizando-lhes oportunidade, tratamento e espaço idênticos nas páginas do jornal. Missão cumprida.
Obstáculos: o principal travão ao desenvolvimento da estratégia, assentou na retração do mercado publicitário, o que obrigou a administração a ter de escolher entre honrar compromissos com quadros e fornecedores ou abrandar a consolidação do projeto. Para aquela retração contribuíram vários fatores, dentre eles, objetivamente: a sistemática atitude discriminatória de que o título era alvo, por parte da gestão municipal, aonde a regra imperativa era a de se mitigar publicidade institucional e/ou ‘desviar’ publicitações obrigatórias para concorrentes menos (ou mesmo nada) preocupados com independência editorial e ainda menos sustentação dos factos: o fim da obrigatoriedade de publicação de avisos, editais e quejandos, por parte da Autoridade Tributária e dos Tribunais; o péssimo serviço de distribuição postal – nalguns casos deliberadamente aleivoso – prestado pelos CTT; o seguidismo cego de algumas entidades (de ordens pública e privada) que acatavam ordens esconsas para desinvestir publicitariamente no Correio da Feira, ao mesmo tempo que se assistia à eclosão de ‘campanhas publicitárias’ cifradas em dezenas de milhares de euros num título ‘concorrente’. Tratou-se então da prática de intervenção espúria no mercado, alterando deliberadamente as mais elementares regras de concorrência, através do peso institucional impositivo.
A isso, e subjetivamente, acresceram outros fatores, nomeadamente: a dificuldade em parceiros institucionais (com a Autarquia à cabeça) perceberem a importância do título nos contextos social, cultural e político, enquanto Órgão de Comunicação Social (OCS) profissional e independente; o baixo nível de exigência dos públicos leitores face ao que era publicado noutros OCS, em termos da interpretação e/ou veracidade de conteúdos; o elevado nível de discriminação institucional de que o título foi alvo a nível local, a ponto de a própria Autarquia esconder deliberadamente informação de base, que disponibilizava a outros títulos.
O Correio da Feira nasceu polémico e, paulatinamente, amansou (ou foi amansado, o que, na prática, vai dar ao mesmo). Consequentemente, foi um título moribundo e à deriva em termos de orientação, com a credibilidade abalada e profundamente anacrónico, aquele que fomos encontrar em 2011, pese embora a boa-vontade e o esforço de alguns colaboradores. Daí, ter sido desde logo necessário recuperar a autoconfiança da equipa e instaurar regras deontológicas. Depois, revolucionou-se a paginação, tanto a nível gráfico como de conteúdos. Plasmou-se (e assumiu-se!) um novo estatuto editorial que ainda hoje é referencial.
Mais tarde, já em 2017 (aquando da minha segunda passagem), o Correio da Feira viria a atingir o mais elevado patamar de prestígio, ao ser eleito – por unanimidade – como melhor jornal regional português, condição sublinhada pelo recebimento do prestigiado Prémio Gazeta, o mais importante alto galardão nacional instituído para o setor.
Entretanto, apraz-me que, após a minha saída, o jornal tenha conseguido manter-se fiel à mesma linha de independência editorial, sendo de realçar a aposta nos canais digitais, graças ao esforço com que o atual diretor e a sua equipa conseguem gerir a torrente informativa.
Na altura, havia da minha parte um indesmentível fascínio pelo Correio da Feira. Como profissional do setor, não me era indiferente a decadência progressiva de um título centenário adormecido, mas ainda assim, inegável referência sociocultural da região. Por isso, não poderia ignorar a oportunidade de ‘despertar o monstro’ e deixar a minha marca pessoal em termos editoriais. Sem jactância, digo que se alguém se quiser dar ao trabalho de conferir, há-de reconhecer que foi sob a minha direção – e sempre com o beneplácito e o apoio da administração – que se acabou com os ‘fretes políticos’, as ‘notícias plantadas’, as bajulações e/ou as louvaminhas parolas; algo que não agradou a muito boa gente, a qual, ao longo de muitos anos, havia dado a domesticação do Correio da Feira como dado adquirido.
Porém, não escondo a mágoa ao lembrar-me de que inúmeras páginas dedicadas a matérias de interesse público, tratadas com clareza e frontalidade indesmentíveis, tenham acabado por encontrar destinatários amorfos e, até, politicamente ‘eunucos’.
Continuo atento ao trabalho do jornal. E sempre com sentido crítico aguçado. A passagem pelo Correio da Feira contribuiu como um belo ‘ponto final’ numa carreira profissional como meio século de experiência repartida entre a radiodifusão e a imprensa.
Nota final: ao rever o texto, dei-me conta de que poderei ser acusado de imodéstia. Aceito. Mas os que me conhecem e os que me têm lido, hão de fazer-me a justiça de reconhecer que não poderia trair agora uma postura de sempre. Não mudarei uma vírgula a este testemunho; e estarei sempre disponível para acrescentar novos parágrafos”.
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Sandra Moreno (de 2012 a 2014)
“Desempenhei funções de diretora do Correio da Feira de 2012 a 2014, mas a minha colaboração com o jornal foi mais prolongada. Creio terem sido entre quatro a cinco anos. Não sou tanto de guardar datas, sou mais de guardar momentos e experiências. E foram muitos os momentos e as experiências.
A missão nobre de informar esteve sempre na base da minha colaboração em qualquer órgão de comunicação social. E foi esse o desafio de devolver ao Correio da Feira essa missão tão importante e única que compete a um jornal e a um jornal regional, como o Correio da Feira, com tantos anos de vida, com tantas histórias e que tanto também contribuiu para a história do concelho de Santa Maria da Feira e para a informação das suas gentes.
Da minha passagem guardo as minhas memórias. Isto não significa que não tenha havido desafios. Pelo contrário. Foram muitos, foram grandes, foram importantes. Mas foram todos vividos com paixão. Foram todos partilhados em equipa e foram sendo ultrapassados, tendo por base essa missão de preservar a história de um jornal centenário e dar-lhe o cariz de um jornal assente nos valores e ética do jornalismo. Ou seja, um jornal assente nos pilares que devem nortear a nobre missão de fazer chegar a casa dos leitores a melhor informação, a mais isenta, a mais atual, a mais diversificada, a mais pluralista.
Foi um percurso bonito, porque o jornal vinha de uma administração que o usava para fins que não eram propriamente os adequados para uma imprensa livre e, portanto, foi quase como um recomeço. A crise económica, entretanto, entrou pelas casas e empresas portuguesas adentro e, como é óbvio, a imprensa escrita ressentiu-se. Mas trilhámos o nosso caminho. Tenho orgulho do que fizemos. E falo na primeira pessoa do plural, porque um jornal não se faz pelo seu diretor, faz-se por todos que nele se envolvem, particularmente, em momentos como aqueles em que vivíamos.
O Correio da Feira continuou nesta senda por informar e informar com princípios e valores que o jornalismo não pode nem deve ignorar. Confesso que não posso fazer uma análise detalhada, porque, entretanto, eu própria enveredei por outros caminhos, abandonei o jornalismo e, às tantas, o meu foco, de uma forma natural, acabou por se centrar nas minhas novas atividades. Em todo o caso, nos dois anos seguintes à minha saída, sei que o jornal se manteve firme ao que mais importa no jornalismo, que é a notícia e a possibilidade de reforçamos a liberdade de pensamento, sem condicionamentos, mas com base em factos. Hoje, sei que aproveitou ainda melhor as possibilidades das tecnologias e agarrou-se a essas oportunidades para se manter vivo e continuar a ser o Correio da Feira, um jornal com história e que escreve sobre estórias das nossas gentes.
Memórias? Tantas e tantas. E são, sobretudo, memórias de pessoas. As pessoas fazem os jornais. Fui feliz no Correio da Feira. É um privilégio enorme sermos felizes no lugar onde trabalhamos. E ao recordar-me desses tempos não contenho os sorrisos. É com orgulho que lembro o Correio da Feira. É com carinho que me lembro dos tantos momentos que vivemos, mesmo os menos bons, porque éramos equipa e em equipa tudo se ultrapassa. Essa partilha deixa marcas para a vida inteira. Excelentes marcas.
Não posso não referir o quanto, ainda hoje, sinto admiração, carinho e um respeito enorme pelo Jorge de Andrade e pelo Paulo Fonseca. Guardo em mim muitas das palavras do Jorge de Andrade. Guardo a sua humanidade, o seu espírito de luta, o seu respeito pelas pessoas e a responsabilidade que assumiu em preservar o Correio da Feira, porque a história não se abandona. Estivemos juntos. Sempre. E com a liberdade de partilhar opiniões, de discordar e concordar. Foi e será sempre uma pessoa especial.
Não poderia ainda não deixar de lembrar o ‘Biná’ [Albino Santos]. Fomos uma equipa maravilha! Lutámos muito, rimo-nos muito e construímos muito. Sempre com o objetivo de tornar o Correio da Feira no melhor jornal possível. Não sei se chegámos lá, nem isso, para mim, nesta altura, importa tanto. Importa o que construímos, o caminho que fizemos, as amizades que preservamos, o profissionalismo com que sempre nos entregámos e as experiências e recordações que levamos pela vida fora. E, depois, e nem de sombras menos importantes, porque éramos todos importantes, o Pedro Almeida, o Rui Santos, a Carla Silva e a Daniela Castro Soares… que saudades! Não continuo atenta ao Correio da Feira tanto como gostaria., mas continuo a desejar o melhor para o jornal e para os que nele colaboram.
A passagem pelo Correio da Feira contribuiu imenso. Quer a nível profissional, quer a nível pessoal. Aprendi muito. Cresci muito. E todas as experiências cimentaram e fortaleceram a minha experiência profissional, a minha experiência como pessoa e, claro, tudo isso contribui para que, independentemente do lugar onde estejamos, saibamos exatamente o que queremos, onde queremos estar e daquilo que jamais podemos abdicar”.