No Dia da Criança — 1 de junho — todos nos empenhamos em que as nossas crianças se sintam felizes e já nos habituámos à multiplicidade de eventos e atividades destinadas às crianças, bem como às promoções dos hipermercados, lojas, livrarias e sites para que os pais brindem os seus meninos com este ou aquele produto tão desejado.
Apesar de o Dia da Criança ser uma efeméride que nos alerta, ou pelo menos, deveria alertar para a Declaração dos Direitas da Criança, a qual visa o bem-estar de todas as crianças a nível mundial, este objetivo está longe de ser alcançado em muitos lugares do globo. Basta pensarmos, a título de exemplo, nas crianças do Iémen tão carentes de assistência humanitária, na subnutrição de milhares de meninos e meninas africanas ou nos recentes refugiados da Ucrânia.
Assim sendo, seria benéfico que os felizardos que têm o privilégio de ver crescer os seus filhos com muito amor, saúde, educação e outros bens essenciais ao seu desenvolvimento, conseguissem evitar, do ponto de vista educativo, aquilo a que alguns estudiosos designam por “perigo da história única”. Quero com isto dizer que sendo as crianças particularmente vulneráveis, não as deveríamos impressionar em demasia com histórias, brinquedos e atividades cujos protagonistas são sempre modelos de perfeição, sem carências de qualquer natureza e preferencialmente brancos, encantadores e de olhos azuis. Já vai sendo tempo de vasculharmos a História e criarmos atividades, onde os protagonistas tenham a pele cor de chocolate, cabelo crespo e olhos orientais.
Nesse sentido, é fundamental que a criança seja confrontada com diferentes culturas e também é importante que, quando enaltecida e premiada com presentes, tenha consciência (naturalmente em consonância com o seu nível etário) de que há milhares de crianças no seu país e no mundo que não têm essa possibilidade. Obviamente que não se pretende que esta tomada de consciência sobrecarregue a criança com emoções sofredoras ao ponto de ofuscarem e relegarem para segundo plano a alegria de ser criança. Quem é o adulto que não gosta de recordar ou de sentir ainda dentro de si o pulsar do coração da sua meninice!?
Porém, educar no quotidiano não é tarefa fácil e a educação não se restringe ao Dia Internacional da Criança. Ser pai ou mãe implicater a noção de que ouvir estórias e participar em atividades de cariz infantil são oportunidades de alteridade, reconhecendo que há outros lugares, outros contextos e narrativas que não são centradas na brancura europeia. Não se trata de negar os clássicos irmãos Grimm ou as princesas da Disney, mas de transmitir a ideia de que a fantasia também pode ser construída por heróis que não são príncipes encantados ou princesas dotadas de uma beleza quase sobrenatural. Compete aos progenitores impedir que a diversidade se transforme em desigualdade ou exclusão social.
Nunca é demais salientar o papel fulcral dos pais, enquanto primeiras referências dos filhos. Se a família tem obrigação de educar a criança, a escola, enquanto instituição, complementa essa atividade educativa.
Nos dias de hoje, parece que educar se tem vindo a tornar uma tarefa complexa, apesar da panóplia de aconselhamentos de psicólogos e pedagogos, tendentes a minorar a indisciplina, o bullying em estado de embrião e as frustrações sentidas na infância. São cada vez mais o número de pais a queixarem-se, em consultas de pedopsiquiatria, de várias dificuldades inerentes à educação saudável dos filhos, nomeadamente, o uso exacerbado de telemóveis, da internet e das redes sociais.
A este propósito, atrevo-me a referir algo surpreendente: segundo o antropólogo inglês Edward Dutton, o QI da população mundial cresceu no século XX, fruto de melhores condições de saúde, nutrição e educação, mas no século XXI tem vindo a decrescer. As causas são complexas e correlacionadas com os efeitos das novas tecnologias no quotidiano das nossas vidas, havendo até cientistas cujos estudos indiciam que o uso exagerado de smartphnes e tablets na infância tem vindo a afetar de forma negativa a capacidade de raciocinar, e que o uso excessivo das redes sociais pelos adolescentes lhes retira a capacidade de concentração, corroendo, a pouco e pouco, os seus recursos cognitivos.
Quanto ao papel da escola, não obstante algumas medidas decorrentes da expansão da rede de educação pré-escolar ou da gratuitidade de manuais escolares, entre outras diretrizes em prol dos aspetos cognitivos, afetivos e culturais dos nossos educandos, é inquestionável que as crianças pobres permanecem em grande desvantagem, o insucesso escolar continua a proliferar apesar do decréscimo do abandono escolar, e, para dificultar ainda mais um ensino básico de qualidade, os nossos filhos têm falta de professores, por motivos governamentais que nos obrigariam a abordar outro tema.
Por fim, e em mote de conclusão, não posso deixar de referir o papel de muitos avós, os quais fruto das condições atuais do mercado de trabalho, quase que substituem os pais a tempo inteiro, o que lhes retira, muitas vezes, a possibilidade de usufruir de descanso e de atividades de lazer no tempo tão ansiado da sua aposentação. Bem sei que o fazem por amor incondicional e que quem corre por gosto não cansa. Mas, por vezes, dou comigo a pensar: será que, um dia, estes netos, assoberbados por uma sociedade apressada e competitiva, vão retribuir tanta entrega e abdicação, cuidando dos avós ou arranjando, em alternativa, estratégias para que estes não acabem os seus dias na solidão?