Não obstante o interregno de dois anos, fruto da pandemia, desenha-se no horizonte a expetativa de que a XXV edição da Viagem Medieval vai acolher milhares de visitantes, tal como sucedeu ao longo de dezenas de anos.
O que estes milhares de visitantes e provavelmente os atores e figurantes deste grande evento desconhecem, à exceção de uma dezena de conterrâneos nascidos e criados na nossa antiga Vila da Feira, é que os espaços onde decorre a Viagem Medieval — as margens do Rio Cáster e as frondosas Guimbras que se estendem até ao castelo no alto da colina — serviram para brincadeiras inspiradas em lutas medievais, em tempos que já lá vão.
Com efeito, nos anos sessenta, havia um grupo de fedelhos pré-adolescentes peritos em recriar cenas beligerantes, ainda que de forma lúdica e grotesca.
Era um grupo de pirralhos no qual eu tive o privilégio de participar e hoje recordo essas tropelias com um sorriso nostálgico do crepúsculo da idade, o que infelizmente já não acontece com outros que, tendo feito parte deste mesmo grupo, já não se encontram entre nós.
Vivíamos todos na zona do Rossio ou lugarejos próximos do centro histórico da vila, naquele tempo antigo em que os moradores da nossa terra cultivavam o ato de ‘ser vizinho’, algo que está em vias de extinção nas zonas urbanas, à exceção de um ou outro bairro residencial.
Sentíamo-nos todos vizinhos e, como tal, partilhávamos as mesmas brincadeiras.
O que nos inspirava, então, para estas lutas a fazer de conta? Desiluda-se quem pensar que eram os manuais escolares, os quais, apelando apenas à memorização dos conhecimentos validados pelos ideais e interesses da ditadura de Salazar, nada tinham de criativo.
Nesse tempo, éramos seguidores dos meios lúdicos de que dispúnhamos: a televisão e os livros aos quadradinhos. Se a banda desenhada exaltava os feitos heroicos dos cavaleiros e guerreiros medievais, a televisão começava a transmitir em emissões regulares, várias séries de carácter juvenil, inspiradas em heróis como Os Cavaleiros da Távola Redonda, Sir Ivanhoe, Ricardo Coração de Leão, Robin dos Bosques, Guilherme Tell e outros, que atuavam no nosso imaginário como fonte de inspiração.
E, como nessa época não havia centros comerciais com brinquedos à venda para azucrinar as cabeças dos nossos pais, os escudos e as espadas de madeira (umas toscas, outras já com certo aparato), bem como os arcos e flechas também de madeira, eram os artefactos usados e construídos por nós para enfrentar o inimigo nos nossos duelos. A azáfama para preparar as nossas batalhas nas Guimbras era grande! Preparar as armas artesanais demorava tempo, e cada um de nós primava por apresentar o seu melhor.
Como éramos muitos, o grupo era dividido em dois: uns defendiam a fortaleza imaginária, outros atacavam. Nestas nossas aventuras de guerreiros, também utilizávamos ramos e folhagens para construir pequenas cabanas, muito rudimentares, que faziam parte do nosso acampamento improvisado.
Por vezes, para tornarmos as nossas batalhas ainda mais reais, esgueirávamo-nos, à socapa, no castelo pela parte de trás, partindo uma barra de ferro numas das ameias, para que o guarda, ocupado a vender os bilhetes das visitas à entrada, não notasse a nossa presença. Porém, para nossa frustração, isto nem sempre aconteceu. Nessas ocasiões, tínhamos que dar corda aos sapatos e fugir pelo mesmo buraco, antes que fôssemos apanhados pelo zelo do guarda.
Nestas nossas batalhas não havia ganhadores nem perdedores: entrávamos na guerra amigos e continuávamos amigos no fim da contenda.
Quem diria que passados tantos anos, estas lutas, repletas de fantasia, iriam renascer em cenas de dramaturgia, capazes de nos fazer recuar no tempo, através de cenários espetaculares, exímias representações de atores e centenas de figurantes, vestidos a rigor, com trajes da época Medieval!
Os fedelhos protagonistas das batalhas lúdicas, ocorridas nas Guimbras, nem em sonhos, alguma vez imaginaram que este mesmo espaço viria a ser percorrido por milhares de espetadores, para assistirem a um dos eventos mais conhecidos aquém e além-fronteiras do nosso Portugal.