Para estudar a pandemia, (enfermidade que atinge ‘o povo inteiro’), torna-se necessário preservar a memória histórica, para compreendermos os acontecimentos atuais, e deles tirarmos as devidas conclusões, assim como, estabelecer comparações, que se julguem apropriadas. Se atendermos a um conjunto de medidas, que foram tomadas para prevenir e combater a pandemia da covid-19, que tem deixado de rastos o mundo dos nossos dias, torna-se fácil verificarmos que foram semelhantes às tomadas em 1918-1919, para atacar a gripe espanhola: - As quarentenas, os cordões sanitários, o uso de máscaras, os hospitais improvisados de campanha, as restrições de liberdades individuais, a higienização dos espaços públicos, etc. Como é do conhecimento geral, a pneumónica, (assim ficou conhecida em Portugal), não foi chocante, apenas, pelo elevado número que provocou de vítimas, mas também, e de modo especial, pelo facto de matar muito de repente, e sobretudo os jovens adultos. Por esta circunstância, foram tomadas medidas de caracter social, como, a criação de orfanatos para os “órfãos da pneumónica”. E muitas outras consequências advieram: o elevado número de viúvas, (pois, a doença vitimou mais homens que mulheres); uma pobreza espalhada; a falta de alimentos: as perturbações mentais dos sobreviventes, e os medos, (embora não se desconheçam estudos que provem relação entre determinadas doenças mentais e a gripe espanhola). A pandemia atacou intelectuais e artistas, com medo da morte. Instalou-se um pessimismo e descrença nas pessoas, que enfraqueceu a ideia de progresso do ser humano. As populações eram ameaçadas pela morte e, quando Portugal estava a ser castigado pela gripe espanhola, principalmente pela segunda vaga, que foi a mais mortal, já em certas regiões do país apareceram os efeitos do tifo e da varíola. Os cadáveres eram colocados a monte nos hospitais, depositados em valas comuns, com funerais de noite, e os sinos deixaram de tocar, para não tornar o ambientem mais pesado.
De entre as doenças que há muito castigam a humanidade, (a varíola, a tuberculose e a gripe), dizem os cientistas, que esta última persegue o ser humano, desde há 12 mil anos. Aconteceram vários surtos na Idade Média. E já na Idade Moderna, a gripe ter-se-á manifestado 13 vezes, no século XVIII, e 12 vezes no século seguinte. E, nem pela sua repetência e por uma série de condicionalismos que se lhe podem associar, a gripe é uma das doenças menos estudadas através da história. De facto, foi apenas a partir dos anos 90 do século passado, que se começaram a fazer estudos mais aprofundados sobre a maior epidemia de gripe da história humana – a chamada gripe espanhola. Os efeitos desta pandemia, não se sentiram apenas pelo número de mortos. (mais de 100 milhões e 500 milhões de infetados), como, influenciaram o curso da Primeira Guerra Mundial, pela negativa; mas, também impulsionaram o arranque do movimento sanitário, o desenvolvimento da medicina alternativa e a procura de outros estilos de vida mais saudáveis. Há dúvidas sobre a proveniência da gripe espanhola: se uns dizem que teve origem na América, outros admitem que tenha sido na Ásia ou mesmo, na própria Europa. Assim como, não há consenso sobre o número de mortos, nem mesmo sobre o número de surtos. No caso de Portugal, há quem afirme que houve quatro, e não três vagas.
Com as marcas físicas que pode deixar, a associação a certos comportamentos desviantes, ou, a um certo povo ou grupo de povo, as doenças serviram, em certas ocasiões, como armas de arremesso. Foi o que aconteceu com a peste, em que a disseminação pela Europa foi imputada aos judeus; com a sífilis, doença cuja designação variava conforme o povo a inculpava; com a cólera, associada aos pobres; com o VIH/sida, atribuída à comunidade homossexual; com a covid-19, a qual já foi apelidada, de ‘vírus chinês’. De certo modo, refira-se a propósito, que a China é encarada como uma espécie de reservatório de epidemias. E a OMS, para evitar conotações xenófobas e discriminatórias, em 2015, decidiu que nenhuma doença poderia
receber nome de pessoas, lugares, animais ou alimentos. A epidemia, que surgiu entre 1918 e 1919, que atingiu todos os continentes, foi chamada gripe espanhola, não por ter surgido em Espanha, mas, pelo facto de a imprensa espanhola se ter destacado na divulgação de notícias sobre a doença. Enquanto, nos países envolvidos na Primeira Grande Guerra Mundial, as informações eram censuradas, para não abalar a moral dos soldados, nem criar pânico na população, em Espanha, dada a sua neutralidade neste conflito de guerra, a imprensa tinha liberdade para falar livremente deste assunto. Uma diversidade de nomes, pode ser explicada pela necessidade de encontrar um culpado, um bode expiatório, para justificar o surgimento de fenómenos imprevistos, que atemorizam a vida das populações. Hoje, já é do nosso conhecimento, a existência de ‘armas biológicas’ e de vírus, em laboratórios, como objetos de estudo. É o caso do HINI, responsável pela gripe espanhola, ‘guardado’ em Atlanta, Geórgia, nos EUA.
A humanidade procura uma explicação para a origem dos surtos epidémicos, ao ser confrontada com a sua ocorrência, e normalmente, procura sair isenta de culpas. Ao procurar agentes responsáveis pelas epidemias mais mortíferas, menciona o rato, o mosquito, a pulga, e mais recentemente, os porcos e as aves. Relativamente à covid-19, ainda se discute a ‘culpabilidade’ do pangolim, (mamífero de África e Ásia, coberto de escamas epidérmicas, que se alimenta basicamente de formigas). Pois, neste discurso de (des) responsabilização, falta incluir um interveniente: o ser humano. O percurso das doenças infeciosas mostra-nos que estas se tornam epidemias, quando o Homem dá condições propícias ao seu desenvolvimento: as guerras; (a malária, a disenteria, o tifo, a febre tifoide e a sífilis); as deslocações de grandes contingentes humanos; a desflorestação; a deterioração de ecossistemas; as alterações climáticas; o crescimento urbano e a falta de saneamento, etc.
O aumento populacional e o próprio progresso têm encaminhado o ser humano para nichos territoriais que colocam em causa o equilíbrio ecológico. Ao invadir um determinado habitat, entra num ambiente repleto de microrganismos, que convivem harmoniosamente com animais e plantas. E o homem sujeita-se assim a pagar um preço muito elevado, por essa intromissão. O seu contacto com os animais, sobretudo, selvagens, favorece a transferência de agentes desconhecidos para o ser humano. Na relação com os seus iguais e com a natureza, com as suas ações e omissões, o Homem tem dado o seu contributo para a ocorrência de todo o tipo de calamidades. Não apenas o surgimento e a divulgação de novas enfermidades (ébola, a SARS, a dengue, a covid-19), mas também a sua transformação em epidemias.
E muito mais haveria a dizer sobre esta matéria.