O ano de 2020 foi diferente e desafiante para todos nós.
Todos ansiámos por 2021 na espectativa de que o passado se fora e o futuro era agora.
Contudo, o medo e a solidão voltaram a desafiar a morte. Mais do que o vírus? Não sei.
Todos queríamos viver a vida, mas o medo imiscuiu-se em tudo: nas ambulâncias, nos hospitais, na fome, no desemprego, na pobreza envergonhada, na solidão dos velhos, no olhar triste das crianças e nos sonhos destroçados dos jovens.
As histórias humorísticas a camuflar o medo propagaram-se com tanta pertinência, que não resisto a narrar um curto episódio ocorrido entre um médico e um doente idoso, num Centro de Saúde do nosso Portugal confinado.
A enfermeira, cumprindo os trâmites legais, não autorizou a entrada da esposa acompanhante.
No consultório, o doutor mascarado mandou entrar o idoso e fê-lo sentar a uma distância razoável. Fez-lhe inúmeras perguntas às quais o velhinho foi respondendo sempre afirmativamente, sem nada ouvir ou perceber. Com efeito, a ausência de socialização causou estragos na sua lucidez, e os ouvidos quando deixam de funcionar, não usam uma canadiana pendurada em cada orelha para que todos saibam que perderam a audição.
A bem da verdade, foi um privilégio uma consulta presencial!
Uma vez chegado a casa, a esposa quis saber como correra a consulta, e o marido, lendo a pergunta nos lábios da mulher, disse que o médico se preocupara muito com ele porque lhe fizera uma catrefada de perguntas e até parecia simpático, embora nunca lhe tivesse visto o sorriso.
E assim continuaram marido e mulher a envelhecer solitariamente.
Antes da pandemia, quando os netos chegavam, a sala destes idosos espraiava-se de alegria, a desfolhar recortes de memórias do tempo em que os instantes da vida fugiam por entre os dedos. Eram pedaços de vida refrescados por risos e lembranças.
Agora, em tempo de pandemia, quando o sol abre o seu leque de luz, eles assomam à janela e observam com nostalgia o fraldejar de roupas de crianças, estendidas na varanda da vizinha.
Eles não saem para a rua. Ficam a cantar a sua elegia nos recantos da sala fria, e quando a lua acaricia a solidão no firmamento, recolhem ao quarto com gestos tristes e trémulos.
A descida substancial do número de casos infetados por Covid bem como o início de todo o processo de vacinação afiguram-se como uma lufada de esperança neste mar de sofrimento.
Porém, se a perseverança e a dor cabem a cada um de nós, também é certo que a responsabilidade pela vida dos que sofrem nem sempre está nas suas mãos.
Por isso, em nome dos que morrem com a esperança nos olhos, dos que enxugam lágrimas de fome, dos que anseiam por palavras de amor ou sofrem em silêncio, deixo um apelo a quem de direito para que as suas vidas não se resumam a mera existência.