Em tempo de pandemia, cada manhã é a espera da noite para que o dia finde depressa.
Temos tanta pressa de ver o bicho ir embora, que nos esquecemos que começámos a morrer desde que nascemos. Ninguém se lembra que por cada hora que passa, mais um passo na direção da morte. Contudo, se dependesse de nós, em tempo de pandemia, dávamos corda aos ponteiros do relógio da vida.
Quando somos crianças, desconhecemos por completo o significado da morte e, se algum ente querido abandona a vida terrena, só existe uma explicação digna de algum entendimento: partiu para o céu e zela por nós num ninho de estrelas, no longínquo firmamento.
A criança, traumatizada pela ausência de quem partiu, conhece a saudade de forma inesperada, avassaladora.
À medida que vai crescendo, o ato de morrer deixa de ser uma abstração, mas nenhum adolescente pensa na morte. É algo demasiado longínquo que só acontece aos idosos.
A cultura hedonística afasta dos jovens qualquer pensamento lúgubre sobre a morte. Os jovens, só em situações muito excecionais, param os seus prazeres, afazeres ou preocupações para refletirem no movimento constante dos ponteiros do relógio da vida.
O tempo é relativo e tão subjetivo! Quando ele reparou, já é o fim da tarde. Quando ela reparou, já um mês findou. E depois, ó meu Deus, mais um Natal que passou! Mais amigos que não viu!
Na meia idade, alguns vão acordando para a efemeridade da existência terrena. Surgem os primeiros arrependimentos do que se deixou por fazer e das palavras por dizer e vive-se, com algum ressentimento, a ansiedade pungente da escalada descendente.
No outono da velhice, a vida assemelha-se a um crepúsculo de beleza e tristeza.
Há por aí alguns heróis, determinados em evidenciar o lado belo da sabedoria dos velhos. Porém, a maioria dos idosos não consegue discernir o belo na angústia do esquecimento. Sim, é verdade. Envelhecer é confrangedor, porque ainda que tenhas saúde e alegria, precisamente na altura em que te tornas sábio, vais perdendo a memória.
O que resta, então, nesse crepúsculo, senão a beleza da poesia, da música ou outra forma qualquer de exprimir sentimentos e emoções? Não ressalvo o amor, o conhecimento e a cultura, propositadamente, para não malograr os mal amados e os sábios parcos em memória.
Não há verdades absolutas, mas se a vida é bela e Deus existe, porque nos deu a dádiva de a viver e a tristeza de a perder? Pior do que isso: se Deus existe, porque tem que haver sofrimento nos últimos compassos do relógio?
Estou a entrar na fase de alguma sapiência com muitos lapsos de memória. Avisto, ao longe, um horizonte de pássaros e gaivotas, mas não sei se tenho recursos para lá chegar. Ouço o tic-tac do relógio dentro de mim. Para não cair no abismo, vou escrevinhando pensamentos que raramente torno públicos.
Pura catarse de meditação, neste tempo de confinamento que nos sufoca com o terror dos hospitais, onde são demasiados os relógios que teimam em parar e tantos os profissionais de saúde que têm adoecido e até morrido para nos salvar.
Que ironia esta! Querer adiantar o relógio da vida, apressando a única certeza absoluta chamada morte.