Confesso que sempre tive alguma dificuldade em perceber a intensidade com que o feirense regozija ao ver, durante uma dúzia de dias por ano, a sua cidade ser tomada de assalto por um evento de cariz alegadamente cultural e de dimensão europeia (se bem que nunca me tenha sido evidente quantos feirenses, e que feirenses, é que ganham objectivamente com aquela grandiosidade) – evento esse que se permite estipular, sem regras que não sejam as suas, um horário dentro do qual o acesso ao centro histórico da cidade é selvaticamente vedado a quem, de forma legítima, nele pretende circular sem adereços no pulso e sem qualquer intenção de viajar no tempo.
No meio deste ‘vale tudo’ medieval, ainda percebo menos a forma despudorada e atabalhoadamente diligente com que a autarquia feirense se apressa a dar seguimento a todas as suas obrigações que com o dito evento se relacionam, parecendo esquecer-se que nas restantes 51 semanas do ano, nem o município é menos merecedor de zelo, nem os munícipes são menos merecedores de respeito.
Será a este propósito oportuno recordar a reacção havida perante o incêndio que no ano passado deflagrou no nosso Rossio:
- num primeiro momento, a escassos dias do início da 22.ª edição da Viagem Medieval (em Julho de 2018), taparam-se as fachadas afectadas pelo fogo com uma tela fixada a uma estrutura de andaimes ali prontamente montada, ao mesmo tempo que se condicionou naquela zona o trânsito automóvel (uma das vias de circulação passou a fazer uso do próprio largo) e se direcionou a passagem pedonal para a parte inferior dos referidos andaimes;
- num segundo momento, a escassos dias do início da 23.ª edição da Viagem Medieval (em Julho de 2019), removeu-se aquele estoico cenário de recurso – que ali permaneceu durante mais de um ano a esconder as cicatrizes da tragédia – e consequentemente, foi àquelas fachadas, ainda feridas, concedido o direito de ver de novo a luz do dia, e a quem por lá passa o de poder voltar a contemplar o Rossio em (quase) todo o seu esplendor, e por ele circular sem constrangimentos.
Olhando em retrospectiva, e tendo em conta o facto de o trabalho de fundo continuar, hoje, por fazer (com excepção de um telhado, o que ardeu lá continua ardido), parece-me linear concluir que o mote para aquele repor de ‘normalidade’ no Rossio foi exclusivamente a 2.3ª edição da Viagem Medieval (cujo arranque se aproximava a galope) e os seus muitos milhares de visitantes, perante os quais aqueles andaimes representariam um problema de segurança real, para além de serem um péssimo cartão de visita (até por já serem conhecidos do ano anterior).
Porque tenho para mim que as cidades são de quem nelas mora, atrevo-me a reconhecer que, por uma vez (se bem que com atraso e por vias muito tortuosas), a Viagem Medieval serviu os genuínos interesses dos feirenses. Mas este foi um serviço em jeito de efeito secundário; um alto patrocínio autárquico revelador de uma obstinação com o ‘bem parecer’ em vez do ‘bem fazer’, e de um comprometimento maior para com o conforto dos de fora do que dos de casa – ambos reveladores da mais profunda saloiice, e perfeitamente coerentes com quem mais não sabe do que gerir em exclusivo para as aparências, relegando para segundo plano um serviço público que tem obrigação de, prioritariamente, exercer.
E nada me espantaria se, perante tamanha e tão oportuna ‘agilidade’ este ano demonstrada, a autarquia feirense estivesse convicta de ter conseguido fazer esquecer a inoperância e a passividade incompreensíveis que impediram, durante um ano, de fazer-se algo tão simples como devolver à cidade, o que pertence à cidade – que é como quem diz, às suas gentes.
Num contexto destes, a indumentária medieval cai realmente como uma luva – e o executivo autárquico feirense demonstrou, uma vez mais, saber envergá-la com muito estilo.