As meninas fogaceiras voltam a sair à rua para cumprirem mais um voto ao mártir S. Sebastião, no próximo dia 20. Em ano sem restrições impostas pela pandemia, os números voltaram a estar próximos do habitual, fixando-se em duas centenas e meia de meninas de vestido branco e de faixa azul ou vermelha com a fogaça à cabeça, a desfilarem na tradicional procissão das fogaceiras pelas ruas da Cidade. Pela primeira vez, as mais pequenas vão usar um casaco de lã padronizado, tricotado pelas voluntárias do novo projeto lançado pela Autarquia, o Ponto Fogaça, que une diferentes gerações e entusiasma as envolvidas
O centro histórico de Santa Maria da Feira volta-se a ‘vestir a preceito’ para as celebrações da mais identitária festividade religiosa de Santa Maria da Feira, no próximo dia 20 de janeiro, feriado municipal. Após ter sido assinalada de forma singela na última edição, devido à pandemia da Covid-19, a Festa das Fogaceiras regressa em pleno ao coração da Cidade.
Em 2023, as centenas de meninas de vestido branco e faixa azul ou vermelha, com a fogaça à cabeça, voltam a percorrer as ruas do centro histórico e, pela primeira vez, as mais pequenas com um elemento especial. Vão desfilar com um casaco branco de lá, padronizado, em detrimento dos diferentes modelos que cada menina optava por usar.
A Câmara Municipal desafiou a comunidade a participar na produção artesanal de casacos, lançando o projeto denominado Ponto Fogaça, que celebra os 518 anos da tradição secular com uma renovada participação da sociedade. Iniciado a 12 de novembro, no Imaginarius Centro de Criação, com um grupo restrito de funcionárias municipais, o projeto rapidamente se estendeu a outras voluntárias feirenses e até de concelhos limítrofes. O movimento solidário conta atualmente com 55 senhoras, com idades entre os 31 e os 95 anos, na sua maioria do concelho de Santa Maria da Feira, mas também de Vale de Cambra, S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis, Ovar, Aveiro e Gaia. “Uma amiga deu-me a conhecer o projeto, gostei da ideia e inscrevi-me. Como adoro fazer trabalhos manuais, é uma boa oportunidade”, afirma a voluntária Goreti Abelha, conhecida por todos por Lelé.
Com 60 anos, Lelé vê na iniciativa uma forma de sentir-se útil. “Não gosto de estar parada, tenho de estar sempre a fazer alguma coisa e enquanto faço os casaquinhos desanuvio”, atira a tricotadeira, que começou por aprender a fazer crochê, no 4.º ano de escolaridade. “No exame final do 4.º ano tínhamos de apresentar um trabalho manual e a professora ensinou-me a fazer crochê. A partir dessa altura, fui aprendendo a arte. A minha mãe desmanchava as camisolas velhas, juntava as lãs e ia-me ensinando a fazer tricô. Por ser mais fácil, comecei a fazer meias e depois camisolas. Agora, surgiu a oportunidade de fazer casaquinhos e adorei”, recorda a feirense, que, embora tenha conhecimento e experiência na arte de tricotar, teve de recorrer a ajuda. “Casacos de lã não sabia fazer, mas combinei um encontro com uma colega e aprendi logo. É só preciso estar atenta. Assim, quando tiver netinhos já posso tricotar uns casaquinhos para eles”, confessa.
A produtividade de Lelé está dependente do fluxo de trabalho na loja de decorações que gere na Cidade, não tendo sido, por isso, a iniciativa lançada num período benéfico, uma vez que coincidiu com a quadra natalícia. “Esta altura foi complicada, porque tenho mais movimento na loja por causa do Natal. A produção do casaco como envolve um material sensível, não convém interromper. Se pegasse e largasse, perdia-me nas malhas. Fui tricotando quando podia. Em janeiro, por exemplo, teria sido mais produtiva porque teria mais tempo livre”, explica. Não obstante, assegura que está a adorar e mostra-se ansiosa pelas 15h30 do dia 20 de janeiro, momento em que a tradicional procissão das fogaceiras sai às ruas. “Já fui menina fogaceira e este ano, quando vir a procissão, será um orgulho ver que contribuí para aconchegar as meninas. Sou muita ligada à tradição, não perco uma edição da festa e quando termina faço um lanche, em casa, com familiares e amigos. Compro fogaças, queijo, presunto e faço chá para acompanhar”, revela Lelé, feirense de gema.
Benvinda Leite soma e segue
Aos 80 anos, Benvinda Leite é uma máquina a fazer tricô. Já fez 12 casacos e é de longe a voluntária que mais peças produziu. O entusiasmo pelo projeto Ponto Fogaça é visível. “Vivo sozinha e só tenho as tarefas domésticas para fazer, mas às vezes nem as faço. Gosto mais de tricotar do que de fazer a cama”, confidencia, entre risos.
À semelhança de Lelé, Benvinda Leite também destaca os benefícios da iniciativa. “Com este tempo de chuva nem dá para sair de casa, para espairecer a cabeça. Assim mantenho-me ocupada. É tão bom. Não imagina a alegria que o projeto me dá”, revela. Residente em Tarei, S. Miguel do Souto, mostra uma velocidade ímpar na produção e um compromisso total. “O tempo vai passando e fico chateada quando sinto que não estou a ser produtiva. Só quero fazer mais e mais”, atesta a voluntária, que já partilhou saberes nos momentos de convívio promovidos pela Autarquia. “Já conheci outras tricotadeiras e ainda ensinei algumas a fazer o ponto fogaça [ponto de malha específico em que é feito o casaco]. Não é ruim de se fazer, mas é preciso muita atenção. Como já o fiz tantas vezes, para mim é fácil”, explica Benvinda Leite, que chegou a reunir tricotadeiras ao serão em jovem. “Como a minha mãe não tinha dinheiro para comprar agulhas, a minha madrinha afiava-me as varetas do guarda-chuva para poder tricotar. Quando há vontade de aprender, tudo se arranja. Dessa forma, fiz muitas encomendas e ensinei muita gente nos serões em casa”, conta a octogenária, cuja filha também participa no projeto. “Ensinei-a a tricotar e é tão viciada quanto eu”.
Este ano, não haverá casacos de malha artesanais disponíveis para as duas centenas e meia de fogaceiras, sendo dada prioridade às mais pequenas. Porém, o objetivo futuro é alargar a oferta. “A possibilidade de o alargar a todas as meninas dependerá sempre da capacidade logística e de recursos, mas estou certo de que com a maturidade do projeto alcançaremos esse objetivo”, avança o vereador da Cultura, Gil Ferreira.
No entanto, se dependesse de Benvinda Leite, as 250 meninas já iriam, esta edição, todasaconchegadas com o trabalho das voluntárias. “Tenho pena que o projeto tenha começado tarde, porque gostava que levassem todas um casaquinho. Era o meu sonho. Mas não é possível, nem toda a gente tem o meu tempo. Ainda assim, no próximo ano, nem que tenha de fazer casacos todos os dias para irem todas iguais”, deixa como garantia.
De Sanfins, Vera Oliveira está igualmente empenhada na tarefa, estando atualmente a ultimar o segundo casaco de lã. “Estou a acabar o segundo casaquinho e conto fazer um terceiro. Como abrangeu a época do Natal, tinha outros projetos em mãos e tive de coordenar todos. Mas até à entrega, no dia 9 de janeiro, pretendo fazer ainda outro. Como trabalho durante o dia e tenho três filhos, faço só à noite e aos fins de semana. É uma terapia”, refere.
“Há a possibilidade de haver novos projetos nesta área”
Voluntária do Clube de Tricô da Biblioteca Municipal, Vera Oliveira, de 45 anos, adianta que o projeto, estando em construção, poderá expandir-se. “Já falamos com as responsáveis municipais sobre a validade do projeto e no gosto que teríamos em que continuasse, até para que todas as meninas possam vestir um casaquinho no próximo ano. Além disso, foi levantada ainda a possibilidade de haver novos projetos nesta área, o que também será uma mais-valia”, diz, acrescentando que “a partilha de conhecimentos e o convívio” entre as tricotadeiras são os principais lucros da experiência.
Ex-menina fogaceira, a voluntária, que domina os saberes do tricô desde os seis anos, não vai perder a oportunidade de ver o seu trabalho. “Como feirense, a Festa das Fogaceiras diz-me muito. É um momento especial e será mais ainda este ano quando vir as meninas a desfilarem com os casaquinhos de lã. Todas nos vamos encher de orgulho”.
Recorde-se que a Autarquia disponibilizou os materiais necessários à produção dos casacos (agulhas, lã, botões e molde) e a equipa coordenadora vai prestando os esclarecimentos necessários à produção. Dado o “sucesso do projeto”, refletido “na elevada adesão de voluntárias e no impacto relevante na comunidade”, terá, segundo afiança Gil Ferreira, “continuidade nos anos seguintes”.
Os casacos de malha artesanais produzidos no âmbito do Ponto Fogaça vão completar o espólio do Cantinho da Fogaceira, que disponibiliza anualmente centenas de vestidos e sapatos brancos para as meninas fogaceiras.